Ao despertar sob o toque da alvorada executado pelo corneteiro do 14º Batalhão de Caçadores de Florianópolis, costumávamos colocar letra no toque:
"Alvorada diz o clarim, a luz amada brilhando enfim..."
Cantada com ênfase ao levantar-nos dos beliches, buscando animação para mais um dia de tarefas e exercícios.
Depois de ajeitar os beliches e o sargento de dia conferir um a um, pra ver se os lençóis estavam assentados adequadamente e as mantas verdes dobradas e colocadas com esmero e simetricamente ao pé do leito.
Depois, a obrigação do banho. Frio. Inverno ou verão. Dávamos uns pulos antes, agitávamos os braços - quando inverno - para aquecer o corpo e a água não descer tão agressiva na sua temperatura gelada. Enquanto a água caía, nos agitávamos e urrávamos feito doidos. Parecia ser isso um lenitivo para o choque térmico.
Finalmente o banho tomado, lá íamos para o café. Formação e marcha, companhia por companhia até o rancho.
O café vinha em canecos de metal que cada um possuía, iguaizinhos, e os pães eram bastante massudos. Diziam, até, que na separação das farinhas e da massa era assim: a primeira peneirada ia para os pães dos oficiais, a segunda para os pães dos sargentos e a sobra (o chamado carolo) ia para os pães da soldadesca. Parecia mesmo, mas naquele momento parecia o manjar dos deuses, tal a fome terrível que aqueles guris de farda sentiam.
Com todas as vicissitudes, foi maravilhoso servir. Enquanto lá, angustiante, pela vontade de liberdade física. Porque a disciplina e os regulamentos impediam solturas reais ou imaginárias. Ao fim do serviço militar, pareceu liberdade. Mais tarde - até hoje ainda, 61 anos depois - viria o arrependimento de não ter engajado e prosseguido na carreira. Sou arrependido sim. Até porque o engajamento me foi oferecido várias vezes por oficiais da 1ª Companhia de Fuzileiros, tal meu bom comportamento e dedicação. Um dos oficiais era Carlos Augusto Caminha, então capitão e mais tarde secretário da Educação de SC no governo Colombo Salles e, finalmente, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado.
Digam o que quiserem, pensam seja o que for, mas servir ao Exército me deu honras e orgulhos imensos. Naqueles tempos, claro. Tudo era diferente. Hoje, não sei.
Saí graduado como cabo, apto à promoção como terceiro sargento em caso de convocação (durante cinco anos iniciais após a baixa).
O comandante do Batalhão era o coronel Argens do Monte LIma. O subcomandante era Ben-Hur de Castro Romariz. Lembro-lhes até hoje. Nisso a memória não falha.
Saudades.

Blog Aderbal Machado
Se os milicos, lá atrás, não concordassem com a "anistia ampla, geral e irrestrita" o quadro atual seria muito outro. Parente meu, querido demais, comunista ferrenho, defendeu várias vezes a "solução cubana" de Fidel (fuzilamentos com julgamentos sumários, a fim de garantir o êxito da Revolução Cubana).
Meu parente saudoso esteve preso em 1964. Um dia, disse-lhe, na liberdade absoluta de abordagens existente entre nós ambos, com o respeito devido que nos cumulávamos sem jamais sobrevir uma rusga sequer por isso: "Se a solução cubana fosse adotada pelos militares de 1964, você não estaria aqui". Ele riu, concordando. Bom dizer: nossos pensamentos e princípios ideológicos sempre foram diametralmente opostos.
Ele nos deixou, a mim me parece, cedo demais. Inteligência privilegiada, uma autenticidade assombrosa em suas ideias e manifestações - muitas a mim me pareceram erradas e outras certas, mas, como disse, não nos confrontávamos por isso; ele não tinha constrangimento algum em reconhecer pontos de vista contrários ao seu. Ideológicos ou não. Nosso elo era de sinceridade absoluta. E por isso nosso vínculo era forte demais. E também por isso, sem medo de faltar-lhe ao respeito póstumo, faço o relato. Ele há de concordar comigo e rir, satisfeito e feliz, onde quer que esteja.
Lembro muito bem do Romeu Lopes de Carvalho – o Romeu Penicilina – durante seu mandato de vereador, eleito em 1969, com exercício de 1970 a 1972. Eu exercia cargo comissionado na Câmara, na época instalada no primeiro andar da Galeria Benjamin Bristot, de frente para a Praça Nereu Ramos.
Candidatou-se várias vezes, sem êxito, com votações inexpressivas. Então, em 1969, novamente lançou seu nome. Surpresa para ele e para todos: elegeu-se com mais de mil votos. Um mandato só, mas chegou e, testemunhei, fez um mandato agitadíssimo, nas suas intervenções nem sempre compreendidas. Na sua simplicidade, mantinha uma postura ética irretocável. Na dúvida, quando algum projeto ou matéria lhe fugia da compreensão, votava contra. Vivia sempre com um pé atrás, com receio de entrar em situações comprometedoras. Para ele, inadmissível. Zelava por ética, antes e acima de tudo. Língua solta, mas ético.
A sua eleição se deu, com tantos votos e após tantos insucessos, por uma decisão de um eleitorado, dizia-se, cansado das mesmices. Então, decidiram descarregar votos em alguém diferente do status. E decidiram, cada um por si e sem combinações maiores, por Romeu Penicilina. Seria um voto de protesto contra o sistema vigente naqueles tempos. Coisa perdurante até hoje. Nunca estamos plenamente satisfeitos com o sistema vigente.
A imagem anexa, conseguida no site do TRE-SC, expõe o sistema antigo: tudo anotado e evidenciado manualmente. Vê-se ali: Arena elegeu 7 e o MDB de Romeu elegeu 4. Certamente todos conhecemos um a um (os cristãos daqueles tempos, claro): Nereu Guidi, Fidélis Barato, Archimedes Naspolini Filho, Edi Tasca, Damásio Reis, Miguel Medeiros Esmeraldino, Eno Steiner (Arena) e Romeu Lopes de Carvalho, Ney de Aragão Paz, Elpídio Meis e Domingos Barchinski (MDB). Destes, cinco exerceram a presidência da Câmara de Criciúma: Nereu, Archimedes, Edi, Miguel e Eno. Com quatro deles trabalhei na assessoria da Mesa da Câmara: Nereu, Edi, Miguel e Eno. Bons, muito bons tempos. Conto isso porque, de repente, amargou aqui dentro uma nostalgia de quando a vida tinha outras atribulações. E amizades cujo conteúdo era irretocável. E, por evidente, inimizades e conflitos também. Hosanas!
Pois rapaziada do sul, mudamo-nos de apartamento em Balneário Camboriú. Saímos do centro da praia, na Avenida Brasil e nos alojamos noutro ap no chamado Pontal Norte ou Bairro dos Pioneiros, o mais próximo de Itajaí. O oposto da famosa Barra Sul do bondinho aéreo, mas do lado da famosa Big Wheel, ou roda gigante. Ao chegar em Balneário, lá pelos distantes idos de 1997, morei num prédio exatamente ao lado do atual, bem na cara da Avenida do Estado, de frente para a famosa rua do hotel Marambaia, ou Avenida Osmar de Souza Nunes.
E foi uma negócio que, logo de cara, notei: aqui tem ao redor, a distâncias de não mais de 300 metros todos eles: dois hospitais (Unimed e do Coração), um posto de saúde, uma tonelada de farmácias, um hospital de olhos, uma paróquia (São Sebastião) e, assustador, uma funerária. Notei que isso formou um ciclo nada virtuoso.
Digo que fiquei bem impressionado. Pareceu uma coincidência do destino maroto.
Aqui, ao contrário da outra morada, lugar de barulho de motos de escapamento aberto, carros malucos com motoristas mais malucos ainda, muita gritaria, queimação de pneus - aqui é um silêncio quase constrangedor. Nas primeiras noites até dormi mal. Silêncio demais. Agora, neste calor infernal, a mosquitada chegou. E engraçado: só vem em mim. Dona Sônia parece ser protegida ou amiga deles. E dá-lhe repelente.
A outra vantagem é que não precisa andar muito para comprar coisas ao redor. Uma casa de materiais de construção, outra de bugigangas, outra de doces e guloseimas, assadores de frango quase na porta do prédio, o supermercado é do outro lado da rua, dentista, comida natural, chaveiro, institutos de beleza (a maioria no térreo do prédio, área comercial). Ah, e o negócio do Véio da Havan, uma daquelas cópias da Casa Branca, mas o terreno não permite a construção da Estátua da Liberdade. Nunca vi ele aqui, embora seja meu amigo há pelo menos 30 anos. Fica bem pertinho daqui. Pra chegar lá andando a gente nem sua a camisa.
Pois então. Gostaram? Apareçam aqui pra gente dar uma rodada na área, visitar o molhe do Pontal Norte, olhar as gurias (depois apanhar da mulher), andar na roda gigante, vomitar de enjoo e beber umas e outras. Não necessariamente nesta ordem.
Ademã, que cavalo não sobe escada (saudade do Ibrahim Sued...)
O Carnaval se foi num átimo. Minha paciência e prazer com a festa brasileira sumiu há muito tempo. A idade, talvez. Isso não é base e nem desculpa, porém. É coisa minha, de doido etário em excesso. Idosos – e não poucos – se jogam à folia, dentro dos seus limites, com uma vontade doida.
A bem da verdade, prefiro a quaresma, embora meus pendores religiosos sejam pequenos em relação às suas tarefas comportamentais. Gosto da quaresma pela sua realidade: a lonjura da folia ou por ser um contraponto às loucuras. A sua antítese. Posso afiançar ser esse meu sentimento arredio à “festa momesca” um jeito de me isolar e viver pra mim e pra minha mulher, trancafiados estrategicamente em nosso canto. Isso, é claro, prevalece em relação a outros episódios sociais.
De alguns a gente participa por respeito familiar e por amizades mais próximas e queridas. E o fazemos com gosto. Mas a nossa preferência é vivermos ensimesmados, trocando sentimentos ou apenas deixando o tempo passar. Começarei a me preocupar quando e se ficar crítico ou infenso a isto. Porque, diz-se: se eu sou incapaz de gostar da minha companhia, a coisa tá feia.
Por inspiração e gostosa influência de minha mãe, religiosa e mulher de fé estrondosa e profunda enquanto viveu, acredito num organizador de tudo isso. Desde a fé até os fenômenos temporais e os mitos da alma humana. Um Ser Superior. E a melhor definição do Ser Superior, pra mim, é da Maçonaria: GADU ou Grande Arquiteto do Universo. É por aí que ando. Creio firmemente num Ser Superior, qualquer que seja seu nome. Porque o Universo é perfeito demais para ser mera casualidade.
As bênçãos do Vô Deba pra vocês.
De vez em quando me vejo respirando fumaça exalada pelas locomotivas, no caminho entre Araranguá e Criciúma, na década de 50, quando viajávamos, às vezes eu e mamãe ou eu e papai, para negócios ou visita a parentes. Uma hora e meia de trajeto, com paradas para resfriar as locomotivas. Suas paradas evocavam vendedores de tudo, de água a amendoim, pastel, “cartucho americano”, cocadas – uma festa de sabores e cores. Inclusive água. E eu, guri complicado, reclamava da venda de água, um bem natural conseguido de graça nos poços de então. Pra que vender? Sabia de nada, inocente…
Pior: era uma única caneca e todos a usavam para beber a água. Ninguém morreu disso. Algum cobreiro ou bolhas surgiam, mas a gente tirava de letra com benzeduras e pomadas, depois.
Chegar a Criciúma tinha ares de festa. A cidade cheirava a pastéis sendo fritos, a comidas sendo cozidas no Hotel Brasil, as batidas de banana da Gruta Azul jogando no ar aquela inebriante sensação. Impossível não parar para um lanche rápido. Nem tão rápido, claro.
Fico imaginando e comparando aqueles tempos com hoje, embora tanto tempo faça que não apareço em Criciúma. Nem em Araranguá. Sou um ser desprezível e ingrato, sinto-me às vezes. Mas não, é falta de duas coisas essenciais: tempo e dinheiro. E eu fico sem entender a estupidez: um aposentado, furando o teto dos oitenta anos, sem tempo e sem dinheiro. E quando tem um, não tem o outro. Nunca chegam juntos. Então, perdoem-me a ausência imprópria. Fico devendo.
E ao fim e ao cabo, diria o saudoso Ernesto Bianchini Góes, fica assim porque tem de ficar assim.
E dou cifras definitivas ao marcador. Até.
Nada a ver com o polêmico e discutido filme nacional, ante seus contextos político-ideológicos. Fiquei à margem das discussões em torno dele, seus méritos ou deméritos, sucessos ou derrotas. Deixa seguir.
O motivo e o título é sobre etarismo. À beira dos meus 81 anos, estou numa fase de normalidade para desprezo funcional, esquecimento, um ar de inutilidade ou precariedade operacional. Pois bem. Nas minhas duas últimas incursões pelo mundo do trabalho, fiquei lisonjeado e fui prestigiado, sem forçar a barra em nenhum momento – ao natural – com convite para ser apresentador do programa oficial de notícias da Rádio Câmara de Balneário Camboriú. Ali fiquei por dois anos e meio cheinhos de muita satisfação. Saí em 30 de dezembro de 2024. Espontaneamente, pois ali fui esplendidamente tratado e respeitado. E correspondi na mesma intensidade, como sempre deve ser.
Deixei o emprego, confesso que meio sem vontade, mas enfim...
É que tive convite para ser Coordenador de Patrimônio e Memória da Fundação Cultural de Balneário Camboriú (a rigor, coordenador do Arquivo Histórico da cidade) pela administração da primeira prefeita eleita da história da cidade, Juliana Pavan, minha amiga, como também o seu pai, eleito prefeito da cidade vizinha de Camboriú, num fato inédito e surpreendente até para as pessoas mais céticas, levado que fui pelas mãos de seu poderoso chefe de gabinete, Leandro Índio da Silva, meu amigo de anos e anos, numa relação de magnífica proximidade pessoal sempre.
E digo tudo para plenificar: em nenhuma das ofertas de emprego a idade pesou alguma coisa: nem meio grama. Nada. O resto seguiu trâmite convencional, comum a todos: um monte de documentos, certidões, declarações, exames, comprovação de proficiência e tais.
Sigo caminhando lentamente, forçado pelo peso do corpo que já não obedece muito bem. Mas ligadíssimo nos projetos que vão andar. Há muitos.
Na verdade, fico imaginando: “E se eu fosse mais novo?”. E sentencio: “Se eu fosse mais novo não estaria aqui”. E me abraço, como quem deseje felicidades e muita coragem para encarar as procelas da vida. Ainda. O futuro a Deus pertence.
Papai, o Senhor Doutor Manoel Telésforo Machado, exerceu a advocacia por quase 60 anos, no sul de Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Era provisionado ou não formado. Sua inscrição na OAB-SC, lembro bem, era número 8. No entanto, advogados, juízes e promotores de Justiça nutriam por ele admiração, pois seus conhecimentos iam muito além dos bancos acadêmicos. E até o consultavam ante dúvidas, pois sua imensa biblioteca jurídica tinha exemplares e coleções inéditas. Estudioso, o Doutor Telésforo falava alemão, italiano, francês ("A Retirada da Laguna", do Visconde de Taunay, em francês, ele o leu várias vezes), conhecia o latim como poucos e, claro, era mestre acabado e reconhecido na língua portuguesa. Castiço de fio a pavio. Se horrorizava com erros de escritas e de fala. E corrigia na hora. No entanto, não o fazia em público e mantinha relação de amizade com muitas pessoas humildes, portanto nem tanto letradas, e com elas conversava, relevando seus linguajares simples e até simplórios. Seguia a trilha, apenas. Tinha essa noção rica do seu lugar e do lugar dos outros.
Foi um pai enérgico, no entanto, jamais bateu num filho. No máximo levantava a voz um pouquinho e lá se ia a gente. Enérgico e vitalmente preocupado com nossa segurança, saúde e felicidade. Nos deu liberdade plena. A ponto de, quando os filhos, todos à minha exceção (ele faleceu quando eu tinha 15 anos), queriam liberdade para fazer e ser o que quisessem, ele concedeu. Com um detalhe: cada um por si. E nenhum deles ficou sob sua guarda direta além dos 18 anos. Todos saíram para levar pancadas da vida e se fazer - e levaram muitas. Só Icleia, a única filha mulher, saiu quando completou 18 anos por casamento.
Poderia falar mais sobre o Doutor Telésforo e sua personalidade cativante e misteriosa até para nós, filhos. Levaria tempo demais.
Porém, este registro não é apenas para isto, mas para marcar este 24 de outubro. Foi o dia de sua partida. Ele se foi neste dia, em 1959, às 7 horas da manhã, num quarto do Hospital Bom Pastor, no Araranguá, aos 81 anos, praticamente a minha idade atual. Em 1980, mamãe também faleceu, num 1º de novembro, num quarto exatamente à frente daquele. Um detalhe guardado por mim até hoje. Seus liames estavam também ali. Por isso ambos estão sepultados numa mesma tumba.
As lições dele são indeléveis. Espero ter herdado algumas e as aprendido como deveria.
Dos seus cuidados conosco, guardo um cartão que escreveu, endereçado ao então Inspetor Escolar Otávio Munir Bacha, agradecendo por sua atenção para comigo. Ano de 1957, meus 13 anos e estudante do Grupo Escolar Castro Alves, do Araranguá (atenção à caligrafia):
Cada um é livre para fazer como quer, mas pessoalmente acho ridículo alguém, idoso, querer disfarçar a velhice com mil procedimentos cirúrgicos. Tem gente, e não são poucos, que pioram muito suas rugas naturais e as trocam por rugas falsas. Como se a velhice fosse questão de aparência. Vamos assumir com dignidade esta derradeira fase da vida! Com dignidade e convicção de que é assim mesmo e fim. Fim, MESMO.
Eu não disfarço. Afinal, sei das enormes dificuldades, percalços e pedras que tive de quebrar e os obstáculos que briguei muito para afastar da trajetória. E, de repente, anulo tudo com uma vontade doida, maluca, deletéria, de querer voltar a ser o que já fui?
Pra quê, me digam?
E assim disse e não me arrependo de nada. Nem dos erros, pois eles temperam a vida e nos conduzem à busca dos acertos. Diz um ditado que o rio não enfrenta os obstáculos - ele os contorna e vai em frente. Até outra.
O mês de setembro é pródigo em aniversários na família: mano Aimberê (falecido) em 28 de setembro, Icleia (mana) e Paulinho (filho) em 8 de setembro e Tuca (Maria Augusta) em 7 de setembro. Deveria render uma bela festa, mas juntar todos é impossível pela obviedade da ausência perene e por tantas circunstâncias outras, impeditivas e infelizes (distância, choque de impossibilidades temporais, geográficas e de ocupação - enfim, uma droga). Sempre me questiono sobre as limitações da vida. De repente, parte-se de um tudo para um nada a uma velocidade estonteante. De repente, tão perto e tão longe. De repente, tão possível e tão impossível. Isso deixa a gente meio abilolado. Eu fico.
Em todo caso, rendo homenagens merecidas a todos. Aimberê foi o mano precioso de tantos momentos só nossos e cujos enredos poderei contar alguns e jamais contarei outros. Icleia foi a mana sempre receptiva, solidária, próxima, caridosa e operosa. O filho Paulinho conviveu comigo uma série de episódios muito doidos e acabamos como hoje - amigos acima de tudo, mais do que o vínculo sanguíneo direto. A Tuca é a sobrinha que todo tio pediu a Deus - sempre forjando suas admirações escancaradas por mim. Como a Icleia, solidária, presente, disposta a fazer o melhor por todos.
E neste momento fico alegre e triste ao mesmo tempo. Não deveria ser assim, mas é. A vida tem suas vicissitudes ingratas.
Jamais deixo de homenageá-lo nas datas simbólicas, como o Dia dos Pais, seu aniversário de nascimento e o dia fatídico de sua morte. Tenho as datas, circunstâncias e ocasiões indelevelmente marcadas em mim.
Foi um pai severo e disciplinador sem jamais ter dado um tapa num filho. "Ralhava" com método: apenas pausava a voz e a impunha grave o suficiente, sem gritar, ao admoestar-nos. Ou bastava aquele olhar agudo como uma flecha flamejante e pronto.
Dentre suas outras "especialidades" estava a de ensinar: em dúvidas sobre significados de palavras, por exemplo, embora soubesse, nos encaminhava para o dicionário. Entretanto, o maior ensinamento captado por todos os filhos foi a conduta no seu simbolismo mais puro. Praticava caridade sem peias e sem limites. Exigia sempre verdades, mesmo se doloridas. Até a elegância ou o bem vestir nos ensinou. Dá pra contar nos dedos de uma mão - e sobra dedo - as ocasiões em que o vi ir á rua sem paletó e gravata em temperaturas normais. Apenas nos verões ferozes não o fazia. Mesmo assim, vestindo camisa social impecável. Barba, sempre escanhoada. Sapatos tinindo de brilho - e quem os engraxava era eu mesmo. Todos os dias.
Seus hábitos alimentares tinham o que hoje se chama dieta ideal: muita fruta, verdura e alimentos sem sal (sempre, desde que eu soube discernir), absolutamente insossos. Todos os dias, consumia cebola a rodo na alimentação e entornava um copo de água com alho esmagado dentro. E nos obrigava a fazer também. Exercia homeopatia, sem ser especialista. Ministrava seus medicamentos em nós e em quem precisasse ou solicitasse. Lembro de nomes como "veratum viridi" e a indefectível noz-moscada.
Advogado solicitador ou não formado, no entanto era um mestre, consultado até por juízes e promotores, que recorriam à sua formidável biblioteca jurídica cujas estantes cobriam três paredes do seu enorme escritório na nossa inesquecível casa da Praça Hercílio Luz do Araranguá. E ainda guardo seu português impecável nas escritas, sua caligrafia que parecia um tipo gráfico de tão perfeita e sua profecia: "A vida nos cobra caro a ousadia de viver; só com valentia e persistência se vencerá".
Pois, após 64 anos de sua morte, sua presença é ainda marcante. Vejo-o e o sinto todos os dias aqui mesmo, me olhando severo e colocando suas mãos sobre meus ombros, em gesto de proteção.
Acometido por uma forte pneumonia desde a sexta-feira, 30 de julho, fui atendido numa emergência, mas só na terça pela manhã porque, supondo apenas uma gripe mais forte, fiquei me automedicando com comprimidos e chás. Até que a coisa agravou e não comia, desânimo, dor forte no peito e nas costas a cada tossida, apelei a um amigo pra me levar.
Lá houve o diagnóstico quase imediato de uma jovem médica, sob um raio-x ultrarrápido.
Fiquei por lá umas seis horas, ante uma bateria de outros exames e tomando um enorme soro para reidratar. Estava realmente ruim. A ponto de, durante a aplicação, desmaiar na sala, sozinho, ante o susto da enfermeira quando chegou. Imaginem: eu me assustei.
Pois conto isso por detalhes: o desmaio - e a burrice brasileira de se automedicar. Poderia ter sido pior, com mais um pouco de demora, se o torniquete não tivesse apertado.
E ali também provei o valor de amizades profundas de colegas – dois, justamente os meus chefes- , ficaram lá de 9 da manhã até 15 horas, com leves saídas (e numa dessas saídas foi que desmaiei) enquanto durou a aplicação e se aguardava os resultados dos exames, até o encaminhamento final da médica.
E se mede assim também os valores e as fragilidades da vida. Tá aqui, daqui a pouco não está mais. Sim, exagero. Não foi pra tanto. Porém a questão é o tempo. Mais um pouco ou menos um pouco.
Em todo caso, agora me recupero e espero estar já bom pro batente na segunda.
Arrivederci.
O ano era 1961. Eu, nomeado para ser servidor da secretaria de Obras de Criciúma, cujo escritório ficava no Edifício Martignago, ao lado da antiga prefeitura, na Praça Nereu Ramos. Gestão do prefeito Nery Rosa. E então resolveram contratar um engenheiro de Tubarão como secretário. Era da Rede Ferroviária e especialista em saneamento. Logo ao chegar, defendeu a canalização do rio Criciúma, na época escancarado por entre as edificações do centro urbano, mas já tomado por alicerces de prédios construídos. O nome do engenheiro: Dagoberto Octávio Gaio, jovem ruivo e cheio de ideias. Lembro dele colocando um mapa da cidade no chão e apontando os detalhes do projeto ao prefeito e ao Aryovaldo, meu irmão e chefe de gabinete de Nery Rosa. Questionado se não era ousadia de mais, sentenciou: "É obra para ser lembrada daqui a 50 anos". Pois não canalizaram e os resultados foram muito ao longo dos tempos. E lá se vão 63 anos.
Dagoberto pode nem mais estar por aqui, mas mostrou - e as ideias permanecem - a visão futura de forma esplendorosa. Depois, outro engenheiro mostrou a visão de como transformar estruturalmente uma cidade e modernizá-la pensando no futuro: Altair Guidi, discípulo de Jaime Lerner. Por justiça, relembro outros dois: Algemiro Manique Barreto (Avenida Centenário) e Eduardo Pinho Moreira (sistema de transporte coletivo integrado).
Relembrar isto me faz pensar em eleição, escolher pessoas certas para gerir cidades, independente de partidos e ideologias. Aqui e acolá.
A preocupação é com a cabeça dos eleitores.
Numa entrevista na Rádio Câmara de Balneário Camboriú, sem imaginar, retornei ao passado em Criciúma. Falei com duas personagens de estudos afro-brasileiros da UDESC, núcleo de Balneário Camboriú: as professoras Daniele Lima Chaves Lopes e Maria Helena Tomaz.
Após a entrevista e eu citar o exemplo da convivência e contribuição africana para o progresso de Criciúma, onde permaneci por mais de 20 anos, a entrevistada Maria Helena Tomaz aguardou o final do programa e revelou ser de Criciúma e, surpresa: é sobrinha da saudosa professora Clotildes Martins Lalau (irmã de sua mãe) e, por afinidade, de Vilson Lalau, também professor e tenor do Coral da cidade. Casal que tive a honra de ter como amigo, ambos falecidos.
Clotildes, inclusive, foi professora de Dona Sonia, no Rio Maina. Vejam quanta coisa ligada num só instante feliz. Foi uma alegria imensa, risadas de lembrança e o registro do momento, aqui estampado. As coisas, felizmente, nos trazem emoções muito alegres e gostosas. Adorei.
Dois personagens do Araranguá (Romário e Campolino) e um de Criciúma (Valério).
Quem eram? São do meu tempo de guri pequeno.
Valério era o entregador de pães da Padaria Brasil. Num balaio forrado com uma toalha, ele corria as ruas de Criciúma, levando os pães aos clientes “cadastrados”. Eles pagavam no final do mês. Impensável hoje, pelas exigências sanitárias. Mais tarde, essas entregas eram também feitas numa carroça, com o leite e até carne. Doidice da época.
Romário era um caboclo, amicíssimo do meu falecido irmão mais velho Adherbal Telésforo, que morreu afogado no rio Araranguá em 16 de agosto de 1943. Por isso, ele era reconhecido como filho por meu pai, pois vestiu a “coberta d’alma” de Adherbal. O que era? Ele foi escolhido por papai (era um tipo de tradição) para vestir, no velório e sepultamento, uma roupa do falecido e, assim, homenageá-lo. Romário vendia lenha acomodada num carro de bois pelas ruas do Araranguá. E mamãe era cliente dele. Todo sábado, ele aparecia e fornecia lenha pro nosso fogão, única forma de cozinhar daqueles tempos.
Campolino era um esmoleiro das ruas do Araranguá. O mais tradicional da época. E naqueles tempos só era permitido pedir esmola aos sábados. Virou costume. Então papai, um benemérito compulsivo, trocava dinheiro, colocava uma mesinha e cadeiras na frente de casa e dava uma moeda ou cédula de dinheiro para cada um. Faziam fila. Mas a doação era limitada a uns 10 ou 20. Quem chegasse primeiro.
O Campolino foi especial porque, além da esmola, ele sentava e ficava trolando com papai. No meio dos papos, soltavam sonoras gargalhadas. E eu nunca soube do que falavam. Campolino era um cidadão analfabeto e papai emérito advogado. Isso jamais embotou a relação de ambos. Eram amigos e parceiros de contações de histórias.
Essa realidade, hoje, parece uma utopia. Entretanto, saudosas lembranças marcaram bem aqueles episódios. Saudades eu tenho...
Eu sou, mesmo, um cara muito estranho. Profissional do rádio há mais de 60 anos e até hoje detesto ouvir rádio e assistir televisão. Só quando há algo muito atrativo. Algo que me chame a atenção com muita força. Do contrário, nem chego perto. Minha mulher Sonia é testemunha. Há perguntas: "Como pode? Você é um profissional de rádio!!". Ora, pode podendo, diria um araranguaense da cepa, como eu.
Eu ouço os meus programas rigorosamente na marra, porque me obrigo a usar fones, ainda mais agora, quando, na Rádio Câmara, trabalhamos em dupla. Outra coisa: detesto minha própria voz quando a ouço.
Talvez haja resquícios de loucura nisso, sei lá. Já tentei me explicar e quase enlouqueci.
Entretanto não é caso único na família: o mano Aimberê virou bancário (Banco do Brasil) e lá ficou por 25 anos. E detestava a rotina de banco. Só aguentou porque o permitia sobreviver com alguma folga. E acabou se aposentando antes do tempo, pela agonia de sair logo e cair no mundo. Literalmente. Viajou por dezenas de países várias vezes. E entrou na literatura, produzindo livros com essência político-ideológica e reminiscência de sua juventude e infância.
Queria o que eu sempre quis: viver em paz comigo mesmo. Dando e levando uns sopapos da vida. Mas indo adiante. Acabo sendo um fracassado de sucesso. E ferrenhamente ranzinza. Que Deus me proteja e nos guarde a todos.
Pois os nomes mais tradicionais de meu tempo de guri, conforme minha lembrança vai mandando: Padaria do Zacaron (Brasil), em Criciúma; posto do Júlio Gaidzinski (Criciúma); Lojas Renner (Criciúma, de Sinval Rosário Bohrer; A Brasileira (loja de Max Finster, com Mário Belolli na gerência, ainda novinho); Sapataria do Zé Kilisque (Araranguá); loja do Elaine Garcia (bicicletas e outras coisas mais, no Araranguá); Armazém de "Secos & Molhados" do Luiz Wendhausen (Araranguá); Posto do André Wendhausen (Araranguá, bem ao lado de nossa casa, na beira do rio); Café Ouro Preto (Criciúma); Sapataria Lurdete (Criciúma); Casa Ouro (Criciúma).
Há mais? Bota mais nisso. Mas fico com a derradeira: Gruta Azul, na subida da João Zanette, quase ao lado do Hotel Brasil, em Criciúma, com um pastel divino e uma batida (depois chamada vitamina) de banana com pitadas de chocolate e a Churrascaria OK, na rua Seis de Janeiro, em Criciúma.
Fico por aqui. Amplexos a todos.
Não faço a mínima ideia de como estão cidades onde vivi por tanto tempo. Só sei por ouvir dizer. Perdi a conta de minha ausência, premida por circunstâncias geográficas e, claro, operacionais, digamos assim. Criciúma, Florianópolis e Araranguá tiveram de mim uma intensa convivência e vice-versa. Foram 18 anos (Araranguá), 22 anos (Criciúma) e 10 anos (Florianópolis). Cinquenta anos cravados. Foram muitas emoções, diria Roberto Carlos. E foram. Tropeços, avanços, alegria, tristezas, enfrentamentos, abraços e proximidades inesquecíveis, cada uma coisa no seu patamar próprio - de lamentos ou de júbilos.
A velocidade urbanística e progressista (sei lá), desfigurou minhas referências telúricas. Muito do que vi e vivi se foi. Talvez, indo lá, nem lembre do original de meu tempo.
Isso não fere as bonomias daqueles tempos. Eram outros tempos, definitivamente. Nada dos avanços tecnológicos, por exemplo, existiam. Vivia-se com o que havia para exercer a profissão e, enfim, para usufruir a vida pública e até em família.
Muitos amigos meus já foram embora para os eternos campos de caça. Parentes principalmente.
E prefiro nem mexer nessas lembranças. Prefiro mantê-las nos meus relicários sentimentais.
Quero ir lá - e irei - numa vilegiatura quem sabe derradeira. Pois as raízes não se desmancharam.
O tempo é danado.
Buenas.
Fomos muito próximos por mais tempo nas relações familiares entre irmãos, da cota masculina. A Icleia, única mana, teve convivência mais assídua, pois até moramos em casas contíguas em Araranguá, mas não havia a mesma preferência por coisas como, por exemplo, debates sobre política, cultura e vida cotidiana. Aimberê foi mestre nisso. Discordávamos muito, sem radicalizações.
Ele tinha um jeito singular: acreditava nas conquistas por valores próprios. Mirava um objetivo e ia. Enquanto corria mundo como funcionário do Banco do Brasil: Araranguá, Criciúma, Brasília, Porto Alegre, Blumenau, estudava. Formou-se em Direito. Não quis advogar e mantinha a inscrição na OAB juntando-se a outros colegas em ações mínimas por ano, uma imposição regulamentar (não sei se isso se mantém). Terminou a vida jubilado na OAB, pela idade.
Já falei: Aimberê foi ferrenhamente comunista. Desde os 15 ou 16 anos, estudante do primário ou do secundário. Foi líder estudantil. Seus pendores ideológicos se baseavam em fundos estudos. Dirão: como pode? Podia. Ele tinha sólidas bases de discussão. Uma capacidade imensa. Discordei dele a vida inteira neste aspecto e, por isso, evitávamos discutir sobre. Ele lá e eu cá, conservador na medula. Nossa fraternidade nunca se misturou a isso.
Poderia discorrer sobre alguns detalhes outros de nossa convivência, no âmbito da saudade. Fico no mais singular dos seus atributos: ele tinha por mim uma admiração que, mesmo sendo irmão, nem eu entendia. Era profundo nisso e expunha sempre. E vice-versa.
A sua morte deixou para trás muitas conversas não reveladas, muitos palavrórios ditos nos encontros solos. Coisa que ninguém testemunhou e nem testemunhará. Ficou só pra nós. E irão embora comigo, quando o Aimberê e eu nos encontrarmos novamente e marcarmos uma visita à Boa Vistinha – ainda Araranguá quando nascemos -, só pra matar saudades da terra mãe.
Casimiro de Abreu ensejou os versos maravilhosos de “Meus oito anos” (Oh, que saudades que tenho...). Eu vou além: “Meus oitenta anos”. É o ciclo fechado e empacotado neste 10 de maio de 2024. Oitenta? Puta que pariu!! Tá doido, meu!
Mas...
O matutar de minuto em minuto é: como cheguei até aqui? Ih, não convém tentar explicar. Arrumaria serviço pra uns dez anos. Foram fases vividas e sentidas em boa parte desse estado de Santa Catarina. Os primeiros verdores do tempo foram no Araranguá – até 17 anos. Depois, 22 anos em Criciúma. Ali forjei a profissão. Depois, uma universidade de tudo e o aperfeiçoamento, digamos assim, em Florianópolis. Passagens aqui e ali e finalmente ancorado em Balneário Camboriú, meu porto seguro e lindo até hoje: 27 anos. Desde 22 de agosto de 1997. Sob os auspícios generosos de Silvano Silva, na época gerente da Rádio Menina, hoje chefão supremo regional do ND+. Poderoso. E fui recomendado pra cá por outro saudoso amigo: Eno Steiner. Uma coisa gostosamente inesperada.
Esta cidade acolhedora me favoreceu, fazendo-me cidadão pleno dela. Pleno mesmo. Me sinto parte dos seus cenários.
Pois, porém, contudo, entretanto, todavia – auguro a todos os amigos, cujas homenagens recebi de muitas formas, diretas e indiretas, presenciais ou distantes, uma pilha incontável de gratidões.
O fundamento é a família, meu sustentáculo e meu sustento emocional e cardíaco. Aqui meu coração repousa, meio pifando, sustentado a vitaminas e travas e meias travas medicinais, mas vívido. Enquanto não resolver parar, esse filho de uma égua, vou levando.
Assim é e assim será. Espero muito mais homenagens nos meus sólidos 160 anos. Não demorará muito. Aguardem.