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E agora, José?

Por Archimedes Naspolini Filho 16/04/2020 - 10:23 Atualizado em 16/04/2020 - 10:28

Ontem me escudei em Luiz Vaz de Camões, com o seu Lusíadas, e o verso marcante de Cesse tudo o que a Musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta.

A repercussão foi tão espetacular que me propus a voltar à literatura, fazendo uma comparação com os versos de um poeta e o estado de espírito do brasileiro comum.

É de Carlos Drumond de Andrade, o poeta maior da terra tupiniquim, a composição poética que embasa as minhas linhas de hoje. E observe, o prezado ouvinte, como cada verso se encaixa, perfeitamente, no cotidiano que estamos vivendo.
E Drumond diz:

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Drumond é fantástico. Parece que antevia, na década de 1940, o que ocorreria com o José brasileiro de 2020. Enfatiza, em cada estrofe, que os bons momentos terminaram, que a festa acabou, que a luz apagou, que o povo sumiu e pergunta: o que resta? Carlos Drumond de Andrade se refere a um José qualquer, muito comum no mundo onomástico brasileiro. Um José que pode ser um José, por que não? Mas que pode ser você que me honra com a sintonia. Um José qualquer, sem tradições, sem frequentar o andar de cima.

Mas Andrade vai além e pergunta: pra que serve a palavra escrita num tempo de guerra, miséria e destruição?

Na estrofe que segue Drumond chama José é sentencia:

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia,
e tudo acabou,
e tudo fugiu,
e tudo mofou,
e agora, José?

Como quem afirma: o Novo Coronavirus está aí, à porta, e você, José, não pode sair, está sem mulher, não tem o que falar, está sem carinho, vigiado e policiado por todos, tolhido da liberdade de ir e vir. E é duro ao afirmar que a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o sorriso não veio. Tudo por conta dessa praga que castiga a humanidade no Século XXI.

E Drumond não se cansa e escreve a terceira estrofe:

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

É como se ele antevisse o dramático momento de José que não pensa noutra coisa que não no emprego, que está a um fio; na comida, que está escasseando; no salário, que pode ter seu valor nominal diminuído; na luta com seus próprios irmãos, na busca de uma situação confortável para a sua família.

Carlos Drumond de Andrade é cruel e escreve a quarta estrofe:

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Drumond é duro: José quer abrir a porta, mas porta não há, quer morrer no mar, mas o mar secou; sequer aventa a possibilidade de José morrer e obriga José a viver.

Aí ele diz para José:
Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Quer dizer, ele tripudia José: Mas você não morre, José, Você é duro José!

E eu emendaria: Drumond sabia o que ocorreria em 2020. Drumond sabia que a pandemia do Novo Coronavirus tomaria conta do Planeta e encontraria o José indefeso. E este raciocínio é tão lógico que ele prossegue:

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua para se encostar,
sem cavalo preto que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Nosso poeta se antecipava e descrevia o isolamento do confinamento, sozinho no escuro, sem Deus, sem fé, sem parede para se encostar, sem cavalo preto ou sei lá de que cor, para cavalgar e fugir a galope. Pobre José!

E minha prosa termina recitando a primeira estrofe deste que é um dos maiores referenciais poéticos da língua portuguesa:

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

E que todos comecemos o dia como queremos termina-lo! Bom dia!

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