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ZILDA ARNS, médica de Forquilhinha, Santa Catarina, para o mundo

Por Henrique Packter 19/12/2022 - 09:35 Atualizado em 19/12/2022 - 09:39

Zilda Arns, José Rogério Peressoni de Castro, Léo Cassetari e eu, nos graduamos em Medicina, na Universidade Federal do Paraná, todos na mesma turma 1959.

Zilda, médica pediatra e sanitarista, foi fundadora e coordenadora nacional da Pastoral da Criança, organismo de ação social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Irmã de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo emérito de São Paulo, das maiores personalidades da Igreja Católica no mundo, Dom Paulo permaneceu 28 anos à frente da segunda maior comunidade católica do mundo, a Arquidiocese de São Paulo, na época com 7,8 milhões de fiéis. Assumindo o cargo de arcebispo em 1970, vendeu o Palácio Episcopal por 5 milhões de dólares, empregando o dinheiro na construção de 1.200 centros comunitários na periferia da cidade.

- Quem tiver dinheiro para comprar carne, em nome de Deus, eu libero para comê-la na Sexta-feira Santa, dizia.

Durante o governo militar em nosso país, impressionou o mundo na defendendo os direitos humanos, agindo corajosamente em favor das vítimas da repressão. Apoiou movimentos em defesa das eleições diretas e contra o desemprego. Lutou com desassombro pelo direito dos pobres e pelo fim da desigualdade social. Todas essas ações valeram-lhe conquistar títulos de doutor Honoris Causa em inúmeras Universidades norte-americanas, Alemanha, Canadá e Holanda. Prêmio de Alto Comissariado da ONU para refugiados (1985), do Fundo da ONU para a Infância (Unicef), entre outros.  

Filho de pequenos agricultores, nasceu em Forquilhinha em 14.9.1921, ordenando-se padre em 1945. Doutor em Letras pela Sorbonne, Paris, 1952, voltando ao Brasil, em Petrópolis foi professor de Teologia, vigário e jornalista. Bispo em 1966, é nomeado Arcebispo de São Paulo em 1970 e cardeal em 1973.

II

ZILDA é de 25.8.1934 em Forquilhinha, filha de Gabriel Arns e de Helena Steiner Arns. Viúva em 1978, Zilda foi mãe de 5 filhos, sendo Nelson Arns Neumann, médico como a mãe. Ele é Mestre em Epidemiologia, Doutor em Saúde Materno-Infantil.  Tese de Mestrado (Universidade Federal de Pelotas) e Doutorado na USP sobre “Qualidade de atenção prestada às gestantes em serviços públicos de acordo com seu nível econômico-social”.  

Em 1959, ano de nossa formatura, tínhamos a cadeira de Pediatria no sexto-ano de Medicina. Zilda desdobrava-se no afã de atender aquelas jovens vidas e de aprender sobre a especialidade. Pediatria Social era seu principal interesse. Meu interesse era dominar a técnica de Sluder para remoção extremamente facilitada das amígdalas e adenoides e aprender Oftalmopediatria com o Dr. Feliciano Leite Ferreira.

Cerca de 1900 Curitiba contava com 50.124 habitantes, em 1920 já tinha 78.896 moradores. As condições de higiene não eram boas; havia falta de água tratada e sistema de coleta de esgotos; o uso das famosas “casinhas”, muitas vezes próximas dos poços d’água, sujeira espalhada pelas ruas e animais vagando. A mortalidade infantil era bem alta. No caso específico das crianças, boa parte da mortalidade estava relacionada a questões de higiene. Cinquenta por cento das mortes registradas na cidade eram de crianças com menos de cinco anos de idade.

Curitiba possuía diversos grêmios de senhoras da sociedade (quase todos com nome de flores), muitos deles dedicados à filantropia. Grêmios que organizavam chás, bailes, coisas assim, alguns com preocupações culturais, educativas e assistenciais. Sob a liderança de um deles, o Grêmio das Violetas e apoio do Grêmio Bouquet, em 22.04.1917 fundaram a Cruz Vermelha Paranaense, cuja primeira diretoria era constituída exclusivamente por mulheres. Após a legalização da instituição e estatuto nos conformes com a instituição nacional, em 28.05.1917 foi eleita diretoria com 15 senhores e 15 senhoras. Mas isso já é outra história.

A Cruz vermelha teve notável atuação no auxílio aos menos favorecidos durante as epidemias de 1917 (febre tifoide) e 1918 (gripe espanhola).

Em outubro de 1919 a Cruz Vermelha, apoiada pelo Grêmio das Violetas, abriu o Instituto de Higiene Infantil, Rua Barão do Rio Branco, 96, num prédio emprestado pela família Gomm. O Instituto era dedicado ao atendimento de crianças, com consultas, distribuição de remédios, alimentos e vacinação. Desenvolveu também programa de educação das mães, informando-as sobre a importância de questões de higiene e da alimentação das crianças, dando ênfase ao aleitamento materno (além do leite de vaca e outros animais, tinha a questão das amas de leite), o que foi feito pela Escola de Puericultura. Cre scia a ideia de um hospital infantil e em janeiro de 1920, por sugestão de Margarida Laforge, foi criada comissão para a aquisição de terreno para o Hospital das Crianças.

Em 1920 o terreno para a instalação do hospital foi comprado pela Cruz Vermelha na Avenida Silva Jardim com pedra fundamental do futuro hospital lançada em 25.12.1922. O projeto do prédio foi elaborado por João Moreira Garcez, então prefeito de Curitiba.

Final de 1928, início de 1929, as instalações do Instituto de Higiene Infantil e da Escola de Puericultura (a Escola de Mãezinhas) foram transferidas para a Avenida Silva Jardim, inaugurada em 2.02.1930. A administração do hospital passou a ser feita por três membros indicados pela Cruz Vermelha do Paraná e outros três indicados pela Faculdade de Medicina do Paraná.

Em 1932 foram inauguradas as três primeiras enfermarias, com o início dos internamentos hospitalares. Ao longo dos anos o hospital sofreu várias ampliações, construído lentamente, na base de doações, listas de subscrições, rifas, sorteios e também com subvenções do poder público.

Em 1935 a Cruz Vermelha Paranaense passa, mediante contrato de uso e fruto, o hospital para a Faculdade de Medicina. Em 1937, durante o governo do interventor Manoel Ribas, o controle do hospital passa para o Estado do Paraná.

Em 1951 passou a chamar-se Hospital de Crianças César Pernetta, homenagem a um dos grandes pediatras do país e que foi diretor do hospital de 1937 a 1939. Em 1956 foi criada a Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro, com a finalidade de ajudar na manutenção do hospital.

Em 1971 foi inaugurado ao lado do Hospital de Crianças César Pernetta, o Hospital Pequeno Príncipe. Realização patrocinada pela mesma Associação Hospitalar de Proteção à Infância Dr. Raul Carneiro. Em 1979 essa Associação Hospitalar, recebe em comodato a administração Hospital de Crianças e passa a integrá-lo com o Pequeno Príncipe.

Em 1990 o Hospital de Crianças César Pernetta é transferido de forma quase definitiva para a Associação Hospitalar de Proteção à Infância. A lei que autoriza o governo do estado a fazer a doação impõe algumas condições: “cláusula de inalienabilidade que deverá constar do respectivo título e será destinado ao atendimento médico hospitalar pediátrico multidisciplinar, ambulatorial e de internamento, …”, além de outras.

O prédio, Unidade de Interesse de Preservação, é simples, mas esteticamente bem aceitável, com detalhes decorativos típicos da época em que foi projetado. Sua parte central, na entrada principal, nesse aspecto é inigualável.

III

Houve um dia no qual Luiz Alencar de Moraes, dileto amigo e colega de turma, e eu, nos aprestávamos para adentrar no Hospital de Pediatria César Pernetta de Curitiba. Alencar planejava instalar-se em Dracena, cidade do interior de São Paulo, onde seria o primeiro pediatra. Era o final de 1959, ano de nossa formatura. Zilda, por sua vez, denotando grande cansaço por uma noite indormida, deixava o hospital.

Vendo-nos, animou-se. Dirigindo-se mais a Alencar que a mim, convidou-o a ver um caso admirável sob todos os aspectos. Era Adãozinho, que ganhara esse nome pela semelhança física com um grande centroavante gaúcho do glorioso Internacional de Porto Alegre. Menino de seus 5­-6 anos, preto, barriga saliente, pernas cambotas e pequenas, braços longos, cabeça enorme, tinha uma síndrome complicada e viveria pouco tempo. Na verdade estava em situação de ter alta hospitalar, mas sua situação em casa era problemática. Viviam todos com a mãe, 7 ou 8 filhos. O pai sumira e o sustento da casa vinha das faxinas que a mãe fazia em casas próximas. Nessas ocasiões as crianças não tinham quem olhasse por elas. A co mida às vezes vinha, mas, quase sempre, não. Os banhos no frio curitibano careciam de água quente, o que fazia os petizes tomarem chá de sumiço quando eram intimados a serem banhados.

Adãozinho pressente algo ruim ao ver Zilda voltar.

- Doutora, fiz alguma coisa errada? Não me mande para casa, por favor. Deixe-me ficar aqui. É tão bom! A água é quentinha e o sabonete cheiroso. Como todos os dias! Se quiser posso até repetir o prato. Eu não incomodo quase nada e minha mãe coitada nunca vem porque precisa trabalhar...

Tomou fôlego para continuar:

- Olhe minha roupa! É nova e limpinha e quase do meu tamanho! Sou tão feliz aqui com meus amiguinhos. Sabe, ontem esteve aqui o doutor Raul (Carneiro) e ele me deu um chocolate inteirinho, só para mim!

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