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Olhar Perdido. Já se encontrou assim?

Por Grayce Guglielmi Balod 19/02/2019 - 13:47 Atualizado em 19/02/2019 - 13:50

Entre as minhas lembranças mais remotas há uma pela qual tenho um carinho especial.

Quando acordava eu ajeitava meu corpo na cama e mirava o teto.

Era o encontro preferido das minhas manhãs.

Meus olhos fitavam o teto branco e aquilo era como o encontro de olhares apaixonados.

Olhava para o teto branco e ficava lá deitada, alheia ao mundo inteiro incluindo as pessoas que o habitavam.

Não havia nada lá. Apenas o teto do meu quarto.

Eu não projetava sombras, não visualizava formas, nem cores.  

Nada explodia diante dos meus olhos naquela tela, diferentemente da explosão de estímulos na tela de um celular.

A cor do teto, talvez, nem fosse branca. 

Paradoxalmente, branco é o adjetivo que dou ao teto para falar da ausência de tudo, inclusive de cores.

Nada o habitava.

E era ali, naquele vazio, que eu me encontrava todas as manhãs.

 

Olhando o teto branco eu permitia que meus pensamentos chegassem e partissem, sem me apegar a nenhum deles.

Muitos pensamentos ocorriam enquanto eu estava lá deitada.

Mas nenhum destes pensamentos permanecia. 

Meu olhar focava o teto - como o zoom de uma câmera - e os pesamentos ficavam desfocados. 

Estado meditativo, talvez.

 

Fiz isso por muito tempo. 

Ficava olhando para o teto branco em noites de insonia também.

No escuro, era preciso ficar mais tempo deitada  ajustando o foco do olhar até que ele se acostumasse a falta da luz e eu, enfim, pudesse enxergá-lo.

O ato de permanecer imóvel olhando para o teto não era alegre nem triste. 

Não era solitário nem me fazia companhia.

Não era pior ou melhor do que qualquer outra coisa. 

Era, somente.

 

Éramos o teto branco, eu e os pensamentos correndo na minha cabeça - como corre o rio em direção ao mar.

Éramos mesmo.

Existíamos.

E permanecemos nas minhas lembranças até hoje.

 

Me pego, as vezes, tentando repetir a experiencia.

Mas perdi a capacidade de me perder - e me achar - no teto branco.

Não mudei tanto assim.

Ainda permaneço por longos períodos com o olhar perdido num ponto.

Bem, não é o mesmo teto branco. 

Mas, creio, não é essa a diferença mais importante.

É que não sou mais a mesma olhando para ele.

Meus olhos inquietos deslizam pelos cantos do teto. Correm para o centro onde está a lampada. Veem mosquitinhos caídos dentro da luminária. Criam formas e sombras. Enxergam pequenas manchas a serem limpas. 

O teto branco, hoje, me faz pensar em tintas e pincéis. Provoca  a vontade de jogar cores e criar formas ali. Ele tornou-se insuficiente para meu deleite.

 

Meus olhos viram muitas coisas lindas nesta vida e com certeza descrevê-las e contrapô-las a visão do teto branco tornaria esta uma escolha absurda.

No entanto havia eu diante de todas as coisas lindas que vi.

E havia eu diante do teto branco.

 

Certamente o que nos marca, a ponto de ficarmos com o olhar perdido diante delas,  não é a linda pessoa, paisagem ou tela.

O que realmente nos marca é o que acontece conosco diante de tudo isso.

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