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A Casa Da Praia Quando Acaba O Verão

Por Grayce Guglielmi Balod 19/03/2019 - 17:45 Atualizado em 19/03/2019 - 17:48

Era final de março. 

Estava oficialmente encerrada a temporada de veraneio eu supunha.

Ir à praia depois da temporada era como ir à igreja quando não há missa, padre ou fiéis.

É o momento ideal para mim.

A praia estava com a maioria de suas casas fechadas. As ruas estavam desertas. 

Havia um vento varrendo o que sobrara do verão.

Era quente ainda. Mas poucas pessoas passeavam a beira-mar.

A luz do sol incidia quase outonalmente sobre nós e sobre todas coisas.

As coisas. Os carros. As casas.

Paramos o carro em frente a casa de praia da nossa família.

Como todas as coisas, lá estava ela, no mesmo lugar.

Assim são as coisas. Nós passamos, elas permanecem.

Incomodou-me num primeiro instante que a casa ainda estivesse lá.

Tantas pessoas já não estão.

O tempo, ultimamente, levando tanto consigo!

Mas a casa de praia não. 

O tempo não a levara. Ela estava lá. 

Estava com outras cores nas paredes e janelas. Tinta nova e fresca a cobriam. A grama que a cercava estava aparada. 

Tanto tempo depois e eu a encontrei renovada. 

Se pudéssemos conversar eu lhe diria, ironicamente, o quanto rejuvenesceu.

Desci do carro e parei na calçada em frente ao muro da casa. 

Com o olhar, desafiei a sua aparente juventude.

Corajosamente, pulei o portãozinho que lhe dava acesso. 

A grama verde e bem cuidada parecia enroscar-se em meus pés. 

Senti que a casa, imponentemente, demarcava seu território de canto a canto.

Eu era uma intrusa naquele terreno.

Reconheci ter perdido o desafio assim que pisei no gramado. 

A casa ficou maior e eu encolhi com o barulho ensurdecedor das lembranças que a habitavam. 

Tentei fitá-la como quem quer continuar o desafio, mas a força para erguer a cabeça e encarar aquelas paredes, portas e janelas, precisava ser maior do que toda a força que eu dispunha naquele momento.

Abaixei a cabeça e caminhei até a varanda, tentando não sucumbir ao vendaval de emoções que me assolava.

O vento teria ficado mais forte? 

Ou seria a força das memórias presas dentro da casa quase me jogando para longe?

Em frente a porta de entrada, confortou-me saber que eu não tinha a chave e não entraria ali, por onde tantas vezes saí. 

Ouvi o ranger dos ganchos da rede, a voz da minha infância, da infância de meus irmãos, sobrinhos e filhas. 

Todas as infâncias em seus verões estavam ali.

Empurravam a porta fechada tentando abri-la a força. 

Minha adolescência em seus verões quase saltava a janela. 

Todas as adolescências que veranearam ali alvoroçaram-se com minha presença.

Assustada, caminhei ao lado da casa percorrendo toda a extensão da varanda. 

Próxima a cozinha ouvi os sons dos pratos, talheres e copos sendo postos a mesa. 

Vozes animadas voltando do mar.

Senti o cheiro da comida de minha mãe e a fome de todos ao seu redor.

O passado abraçou-me convidando a juntar-me a ele. 

Meio sem vontade, virei a esquina da casa que dava para a parte dos fundos.

Parada em frente a porta da cozinha eu desejei ardentemente aceitar o convite e sentar para almoçar com as lembranças e matar minha fome e minha sede do passado. 

Eu pensei que poderia ficar ali nos fundos da casa da praia para sempre e viver daquelas lembranças. 

Eu teria ficado ali como alguém que senta  ao lado de um baú de cartas e fotos antigas e passa seus dias revendo-as, relendo as e  alimentando-se de lembranças. 

Eu achei que poderia suportar todas as memórias tristes guardadas naquele 'casa baú' só para sentir outra vez o cheiro da comida da minha mãe e me sentir junto de todos voltando do mar ansiosos pelo almoço. 

Parei de pensar por alguns segundos  e olhei para a garagem.

Enxerguei as mulheres da casa lavando roupas no tanque e os homens da casa lavando os carros enquanto as crianças tomavam banho na piscina de plástico. 

Toda aquela água começou a respingar em mim.

Estava muito quente. 

A água e as lembranças eram frias.

As lembranças jorravam pelas frestas e eu não as queria fora. 

Precisava deixá-las. 

Se caminhasse um pouco mais eu chegaria ao final daquela parede e virando a próxima esquina da casa eu encontraria o caminho de volta. 

Pensei no que faria. Cheguei a perguntar em voz alta o que deveria fazer agora.

Caminhei  até o fim da parede e, dos fundos do patio, enxerguei a rua, o carro e dentro dele as pessoas que eu amava. 

Caminhei rápido abafando as vozes dentro da casa e dentro de mim.

Caminhei me recompondo.

Caminhei sentindo o que estava deixando para trás a cada passo que dava. 

O gramado acabou e passei por cima do portão novamente para deixar o pátio da casa.

Sentei no banco do carro e, com as pernas ainda para fora, olhei novamente para casa. 

Algumas lágrimas desnecessárias e teimosas escorreram limpando o orgulho dos meus olhos. 

Nada em mim era desafiador ao olhar para a casa agora. 

Eu havia caminhado ao redor da casa e estava de volta ao carro. Isso era tudo. 

Olhei uma ultima vez para a casa, desta vez com respeito.

E com uma gratidão dolorida. Mas ainda assim, olhei com gratidão.

Quando o carro partiu desejei por um instante que a casa deixasse de existir. 

Sou assim. Gosto quando as coisas quebram, porque eu não sei o fim delas. 

Mas na esquina daquela rua percebi que era entro de mim que aquelas vozes começavam a silenciar.

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