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César Sartori, pioneiro médico em Urussanga  - FINAL

Por Henrique Packter 24/01/2022 - 09:25 Atualizado em 24/01/2022 - 09:28

Sartori envelhecia. Beirava os 80 anos. Nova guerra ensanguentava a humanidade. Forte como velha árvore, conservava plena lucidez de espírito,mas sofria duas modificações opostas: no trato com os homens, a bondade e a tolerância cada vez mais se sublimavam; na análise política, extremava-se cada vez mais. Passou, dessa época em diante, a atender quase que exclusivamente à clientela que não podia pagar. Fornecia medicamentos a quase todos esses clientes, amostras sobretudo. Se alguém de melhores posses o procurasse, mandava consultar médico mais jovem “que conhecia a medicina mais moderna”. Assaltado por profundo ceticismo terapêutico passa a receitar chás da medicina popular, ervas que conheceu em seu contato com os selvícolas.

- Essas – dizia – pelo menos não fazem mal ao paciente. Já anos antes correra o boato de que não enxergava bem e que, por isso, operava mal. Operava de óculos! Era o maior argumento dos concorrentes. Estava, então, em plena posse de sua técnica. Esse juízo abalou profundamente o rijo lutador.

O artista atingido em sua sensibilidade! Talvez aí a explicação de seu triunfo como cirurgião: não ser um mecânico de bisturi, mas artista sensível, vivendo sua obra. Fazia com prazer a cirurgia reconstrutora e tinha quase aversão à cirurgia destruidora, às amputações e mutilações obrigtórias!

No pequeno consultório entra em manhã de inverno um cliente. muitos anos fora tratado, com a família, gratuitamente por Sartori. Não podia mesmo pagar àquele tempo. Enriqueceu com herança inesperada. Endinheirado agora, procura o velho médico.

- Vim aqui, doutor, para lhe pedir um conselho e não para consulta.  Como o senhor vê, já posso pagar. Quero me tratar agora  com o Prof. Miguel Couto, no Rio. Antes eu não podia ir. O senhor bem sabe... Vim aqui ainda incomodá-lo porque o senhor é viajado e poderá dar-me umas informações.

Ao antigo cliente gratuito não ocorrera, nem por sombras, pagar o trabalho atrasado do médico. É dos mais estranhos hábitos, esse de se retribuir geralmente todos os serviços, menos o do médico. Talvez isso provenha do fim do século 19, em que o médico da família tratava-a de graça e dela recebia seu sustento cotidiano. Ou então do tempo em que a Medicina era exercida por escravos.

Sartori consultou papéis, tomou algumas notas: - O senhor primeiro tomará um auto até o porto. Depois pegará vapor até o Rio. Lá esperará uns 10 dias até poder consultar o professor. Pagará os cem mil réis  da consulta e ele lhe pedirá exames. Daí um semana o senhor voltará para saber que deve continuar o tratamento da sífilis que o senhor herdou do bisavô, do avô e do pai. Mas, para isso, caro cliente agradecido, já que seu antigo médico não serve mais para nada, o senhor (esticou então o braço indicando incisivo), comece saindo por aquela porta ali.

O FIM

Ia alta a madrugada. O frio do inverno lageano penetrava pelas frinchas das janelas. Batem à porta de Sartori. Batem mais. Ele já há tempo não atendia mais chamados. A preta velha estava doente, muito doente. Lá longe, no Banhado. Era pobre. Não podia pagar médico. Ele se levanta e vai. Voltou com calafrios. Depois veio a febre e a pneumonia. Os remédios não surtem efeito. E saiu para a grande viagem, poucos dias depois, na madrugada fria, quando a Estrela D’alva brilhava escandolasamente no céu azul escuro.

Morre em 12.7.1945 da pneumonia que contraiu. Seu enterro preito de todas as classes sociais, especialmente das mais modestas, teve caixão, por expressa vontade sua, carregado por membros da comunidade negra e dos pobres da cidade.

Seus contemporâneos não chegaram a reconhecer-lhe o valor. Não passava, para grande parte da população, de um excêntrico. O povo, porém, o adorava. Pediu que fosse enterrado em caixão de tábuas nuas, carregado pelos negros que tanto admirava, em lugar desconhecido, sem barulho, no meio da mata. Não lhe fizeram esta última vontade. Seu enterro foi consagração popular. Jornais teceram vastos necrológios. Foi perpetuado em bronze que reproduz com perfeição sua fisionomia austera e boa.

Assim, morre esse mestre da cirurgia, vivendo incógnito numa cidadezinha, esponteamente isolado dos grandes centros, onde, certamente, se imporia pela força dos conhecimentos, grandeza de caráter e perfeição técnica. Alguém em visita ao busto do Mestre ouviu comentarem com simplicidade:

-Está igualzinho. Até aquelas verruguinhas!

(Baseado em REVELAÇÕES DE UM MÉDICO, 2ª edição, Editora 

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