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Fundão e janela: gambiarras da política contra decisões ruins do Stf

Por Upiara Boschi Edição 04/03/2022
Agência Senado
Agência Senado

"Hecha la ley, hecha la trampa", diz o ditado em espanhol - "feita a lei, feita a armadilha", em tradução literal. O significado é óbvio: toda tentativa de regulamentação, normatização, moralização, acaba sendo acompanhada pela artimanha para que ela se torne ineficaz. Ou até piore. Estou recuperando o ditado porque dois temas relevantes da política brasileira em destaque esta semana têm na raiz as tentativas de resolver questões pertinentes com base em canetadas do Judiciário que geraram apenas subprodutos indesejados.

Começo pelo fundo eleitoral, o famigerado fundão de quase R$ 5 bilhões que vai custear as campanhas eleitorais deste ano. Aprovado marotamente pelo Congresso Nacional com resistência do Palácio do Planalto medida milimetricamente para não atrapalhar, o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal (Stf) na quinta-feira por ação movida pelo Novo, que questionou os procedimentos legislativos utilizados para inflar o já polêmico fundo eleitoral da casa dos R$ 2 bilhões para o valor atual. Pesquisa recente mostrou que 90% da população rejeita o fundão. No pleno do Stf, o resultado foi 9 a 2 pela regularidade do aumento - mesmo que a maior parte dos ministros tenha criticado o exagero no aumento.

O fundo eleitoral é um saco sem fundo, perdoe o trocadilho. Por mais dinheiro que se coloque nele, é insuficiente para custear o tipo de campanha política que se pratica no Brasil. A ação do Novo era frágil e marqueteira, o Stf não tem culpa de tê-la rejeitado. Mas tem culpa, sim, quando lá em setembro de 2015, os ministros resolveram dar alguma satisfação à reação da sociedade contra a revelação, pela Operação Lava-Jato, das espúrias relações entre políticos e doadores, e interpretaram criativamente a Constituição para proibir as doações de empresas nas campanhas eleitorais.

Não só jogaram fora o bebê junto com a água do banho, como mostraram certa ingenuidade em acreditar que a classe política ia substituir o pedido de dinheiro a empreiteiras pela venda de bottons de seus partidos. Os políticos desengavetaram a ideia do financiamento público, sempre rejeitada pela maioria da população, e iniciaram esse fundão que cresce desmedidamente a cada eleição. O Brasil um dia vai ter que discutir verdadeiramente o sistema eleitoral e seu financiamento. Essas gambiarras e remendos bilionários não têm como terminar bem.

Outra solução supostamente moralizadora implantada pelo Judiciário também gerou em gambiarra política em destaque esta semana. Desde quinta-feira, está aberta a janela de um mês para que deputados federais e deputados estaduais troquem de partido sem correrem o risco de perderem os mandatos. A chamada infidelidade partidária também foi proibida por decisão do Stf. Era novembro de 2008, outra decisão por 9 a 2. Mais uma vez, o Judiciário legislou, tomando iniciativa no vácuo parlamentar para moralizar a conduta política. E foi mais um esparadrapo.

Para criar rotas de fuga, os políticos usaram as brechas dadas pelo próprio Stf. A primeira foi a "justa causa". Alguns advogados bem relacionados nas cortes viraram até especialistas em fazer as travessias com justificativas de perseguição interna ou algo assim. Depois, mais sofisticada, a brecha que permitia a mudança de partido caso fosse para uma legenda recém-criada. Nasceram partidos a rodo para justificar as trocas, tornando ainda mais artificial um sistema partidário que já representava muito pouca coisa. Mas ainda era pouco. Em um dos remendos periódicos que o Congresso faz e chama de reforma, os políticos criaram essa janela de 30 dias no ano eleitoral para que parlamentares mudem de partido sem desgastes ou justificativas. 

Com ela, a infidelidade partidária ganha hora certa. Mas, claro, a infidelidade não costuma respeitar regras. Então, o que se vê são bancadas informais, políticos eleitos por uma sigla frequentando as reuniões de outra e coisas assim. Até a hora de formalizar a mudança. Maior bancada eleita da Câmara dos Deputados e segunda maior da Assembleia Legislativa, o Psl é uma abstração desde 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro deixou o partido. É o exemplo máximo dessa mentira que a vaidade do Judiciário quis.

Até o final do mês, devem atravessar a janela partidária uns seis deputados federais e 10 deputados estaduais só em Santa Catarina. Hecha la ley, hecha la trampa.

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