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O casarão do Manif

Em "Centro Cultural Jorge Zanatta", capítulo 26, a história do preso político que fez um livro em pleno casarão
Por Denis Luciano Criciúma, SC, 10/12/2018 - 11:05
O Dia, abril de 1964
O Dia, abril de 1964

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1º de maio de 1944. Criciúma e seus problemas sociais. Épocas em que as mineradoras precisavam importar médicos para atender. Eram muitos casos. Os pulmões dos trabalhadores padeciam perante às poeirentas minas. Chegava Manif Zacharias em Criciúma. Vindo de Curitiba, onde nascera em 1918, era um médico de mão cheia. E chegou em um período especialmente agitado da vida criciumense. Dali a poucas semanas a cidade virava comarca e ganhava uma associação empresarial, a ACIC.

No ano seguinte, mais realizações. Não demorou para Manif conhecer Pedro Benedet, o italiano que fez erguer um casarão em uma campina de sua propriedade naquele caminho que levava até o Hospital São José. Caminho que Manif muito fazia, afinal, era um dos cinco ou seis médicos que naquele tempo atendiam ao povo doente.

Manif sempre gostou muito daquele casarão, embora não tivesse muitas razões para lá estar nos tempos de Plano Nacional do Carvão. Mas o médico encontrou um tempo, a partir de 46, para ajudar na recém fundada Rádio Eldorado Catarinense. Emprestava sua voz grave para noticiários. Função amadora, não recebia um centavo. Mas ali conviveu com gente extraordinária. Conheceu os irmãos Machado, Agilmar, Attahualpa, César e Aryosvaldo, esteve esposo de Dulce Rovaris, a Margô, primeira radioatriz criciumense. A irmã dela, Darci, casou-se com Manif.

Veio o Tribuna Criciumense em 1955, e muito o médico ocupou as páginas do semanário para denunciar as ruas precárias, a falta de saneamento básico. Por esses discursos afiados e pela anterior vinculação aos comunistas locais, Manif Zacharias tornou-se gradualmente visado, em um movimento que vitimou a sua liberdade em 1964.

Aí sim, ele teve razão, ou circunstância, para conhecer aquele casarão que, não fosse a existência lá dentro do primeiro aparelho de raio-x de Santa Catarina, e o velho médico não teria razão qualquer para subir aquelas escadarias. Poucos dias antes do golpe dos militares em 64, Manif encaminhou uma paciente ao oftalmologista Henrique Packter. Mas não teve tempo de receber o retorno. É que, tão logo ascenderam ao poder os militares, Manif foi caçado. Era preciso um símbolo local da repressão, prender alguém para mostrar força. O popular médico fora escolhido.

Manif passou a viver semanas ali como preso. Em uma saleta ao fundo, onde recebia uma ou duas visitas por dia. Mas até essa gentileza pouco durou. Logo esse privilégio acabou. Inteligente como só, o médico tirou proveito então daquele ócio do cárcere no casarão para ler. Leu e releu e se emaranhou em Os Sertões, de Euclides da Cunha. Analisou tanto 6 mil palavras empregadas na obra que, a partir disso, escreveu Lexicologia de Os Sertões, um de seus livros, o de maior alcance. Lhe rendeu até prêmio da Academia Brasileira de Letras. Foi a primeira sacada intelectual daquele casarão que, décadas depois, viveria da cultura e para a cultura.

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