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O conhecimento que inclui

Quem não enxerga nem ouve, ou vive sobre uma cadeira de rodas pode, sim, estudar na Universidade
Por Denis Luciano Criciúma, SC, 19/09/2018 - 07:05
Fotos: Guilherme Hahn / A Tribuna / Especial
Fotos: Guilherme Hahn / A Tribuna / Especial

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Há quem não enxergue, mas estuda Direito. Deficiência visual baixa não barra o futuro pedagogo ou psicólogo, nem acadêmicos de Ciências Contábeis, Fisioterapia, Medicina, Odontologia. E quem carrega a síndrome de Down também busca seu diploma. Para outros, uma deficiência intelectual não é empecilho para se graduar em Artes. E não escutar não foi barreira para colar grau em Ciências da Computação.

Acima, alguns dos muitos exemplos de superação que a Unesc oferece a partir da máxima da inclusão. “Esse é um dos eixos do presente e do futuro da Universidade, incluir”, confirma a reitora Luciane Ceretta. É por histórias como estas que roteiros de vitórias entrelaçam a Daniela, a Elisabete e tantos que não se renderam aos limites do corpo. 

Na determinação, a vitória

“Mas sempre foi uma luta diária”, confirma Daniela Cardoso de Oliveira, 25 anos, acadêmica da sétima fase de Psicologia da Unesc. A futura psicóloga deixa São João do Sul todo dia para, no rumo da Universidade em Criciúma, procurar no cotidiano o destino que tanto almeja. “Quero ocupar todo e qualquer espaço na minha profissão”. Muito justo.

Um glaucoma congênito tirou cedo a visão da filha do seu Adelino e da dona Antônia. “Aprendi a ler com eles, em casa”, conta, orgulhosa dos pais e visivelmente emocionada, Elisabete Gonçalves Barbosa, 33 anos. Psicóloga formada na Unesc, ela nunca enxergou de fato. De bengala na mão e sem os clássicos óculos escuros, com os olhos cegados inquietos ao sabor da audição aguçada, há dois meses ela atende no Setor de Apoio Multifuncional de Aprendizagem (SAMA), um organismo criado na Universidade para auxiliar quem tem dificuldades que vão das naturais consequências das deficiências até déficits dos mais variados.

“Chegamos a ser a Universidade com o maior número de portadores de deficiência”, lembra a reitora. Mas é preciso avançar. “E estamos trabalhando nisso. No último ano identificamos os principais problemas a superar e agimos”. Os resultados aí estão, apontados pela gestora. Além do SAMA para apoio cotidiano aos estudantes e futuros profissionais, há cursos permanentes de Libras – a língua brasileira de sinais – “gratuitos para todos os professores e alunos”, anuncia Luciane Ceretta. “É a forma que temos de incluir mais quem não ouve”. 

E para quem não enxerga? “Tradução em braile, áudio descritores, melhorias na infraestrutura com rampas, pisos táteis”. E para as limitações físicas? “O CER está aí tratando, reabilitando”, conta, referindo o Centro Especializado em Reabilitação, referência em aplicação da ciência em prol do potencial físico e psicossocial. Um pouco do enorme universo de oportunidades que abrem as portas do ensino superior para incluir.

A gente pode ter discurso emancipador,  mas as práticas ainda são de pessoas da normalidade. Eis o desafio”.

Luciane Ceretta, reitora da Unesc

Tac-tac-tac! É a Bete chegando

E pensar que a psicóloga não entrou em uma escola antes dos dez anos. “Na época diziam isso, que eu tinha que ficar em casa”, recorda Elisabete. Os pais não se conformavam. “Meu pai, muito humilde, mal sabe escrever o nome dele, mas sempre quis os filhos estudando”. Ter a filha cega não foi empecilho. “Meus pais me ensinaram a ler e escrever em casa. Como eu enxergava um pouco de cores, eles desenharam letras grandes com canetinha hidrocor e compraram alfabetos de plástico para eu manusear. Brincando e ouvindo, aprendi”.

Veio a vaga na escola. Bete não desanimou. Com o braile na ponta dos dedos e sonhos no coração, foi dedilhando as letras e construindo conhecimento. Aprendeu a andar pela cidade driblando barreiras sem enxergar. Ganhou autonomia e dignidade pelo esforço que a educação exigiu. Precisou do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja) para concluir a oitava série. “Fiz o Ensino Médio normal, no Colegião”.

Dos limites vêm as oportunidades

Elisabete gostava de frequentar a biblioteca da Unesc. Corria 2004. “Tinha muitos livros em braile lá”. Ainda tem. “Na orientação profissional da Universidade me identifiquei com Psicologia. Fiz vestibular e passei”. Sem temer o desconhecido, embora não imaginasse como seria cursar uma faculdade sem enxergar, encarou os anos de curso. Livros escaneados e transmitidos via áudio descritores foram o grande salto. “O braile sempre será importante, mas assim posso ter centenas de livros no meu notebook”.

“Elisabete Gonçalves Barbosa”. O nome grifado no diploma consumava um sonho. Mais que um pedaço de papel, era a prova de que é possível. Hora de trabalhar então. “Nos primeiros anos pós formada, fiquei na Unesc na Comunicação, na interlocução com o mercado, com escolas e novos acadêmicos”. Há dois meses uma nova rotina fez brilhar os olhos vibrantes que não veem mas tanto transmitem. Bete passou a trabalhar no SAMA, o mesmo órgão que atende deficientes. “Deficientes não, diferentes. Pois nem tudo neles falta, às vezes sobra”, define Luciane Ceretta. “Tac, tac, tac”, anuncia a bengala da Bete tateando os corredores e o piso irregular do corredor do Bloco L. “É a Bete chegando”, avisa a professora Zélia. Meia dúzia de jovens orientandos esperam ansiosos por ela.

Disléxicos, autistas... todos podem...

Quem sofre de dislexia pode ter sucesso na escola. Cursar uma faculdade, inclusive. Que o diga a coordenadora do SAMA. “Não só dislexia. Autistas também, e quem tem déficit de atenção e transtornos mentais”. A informação da professora Zélia Medeiros Silveira dá o tom da dimensão que a inclusão tem para a Unesc. “Temos um percentual grande de alunos nessas condições”, confirma. 

Entre os casos mais delicados, estão os de acadêmicos portadores da síndrome de Down. “Fazemos acompanhamento. Eles são muito esforçados”, relata. E ninguém é poupado. “Os conteúdos são os mesmos. O que fazemos é adaptar metodologias”, destaca a professora. 

A Semana da Pessoa Portadora de Deficiência, cuja programação está em andamento, é palco para reunir as demandas da inclusão. “O grau de desistência de acadêmicos deficientes é maior. Estamos lutando para conter isso”.

Barreiras e caminhos para superar

Atender o aluno com deficiência intelectual é o grande desafio. “Com as limitações físicas, adaptamos tecnologias, métodos e estruturas. Com a intelectual exige-se habilidades a mais”, pondera Zélia. “E tem as famílias, que muitas vezes não aceitam que o filho tem deficiência e fazem do ensino superior um desejo muito mais seu”. 

Não foi o caso da Daniela. A estagiária de programas de Psicologia Social, que está fazendo parte de uma ampla pesquisa que mapeia o público da Universidade, alcançou os sonhos que sonhou desde cedo com os caminhos abertos pela Unesc. Mesmo sem enxergar.

Ela vê luzes e vultos. Nada legível. Precisa do braile, visualiza cores fortes e foi, em São João do Sul, a primeira aluna cega da sua escola. Isso em 1999. “Não tinha material especial, os professores não sabiam como atender”. O gosto por estudar deu forças. “Eu sofria bastante bullying. Apanhava, ouvia xingamentos de outras crianças”. Aprendeu na dor.

A grande oportunidade de Daniela veio aos 14 anos. “A Associação Catarinense para Integração do Cego me ofereceu moradia em Florianópolis e lá aprendi a usar bengala, a fazer tudo sozinha, mexer com informática”. Estava ganha a bagagem para o passo seguinte: buscar o diploma.

Com 18 anos, o primeiro vestibular, a primeira aprovação e o início na vida acadêmica. Na Unesc. Em Ciências da Computação. “Dois anos e meio depois vi que não era a minha área. Fiquei um ano parada, pensando no que faria. Aí veio a Psicologia”. Agora, são seis anos de convivência no campus. Diária. Fazendo amigos, ganhando experiências. “A gente vê avanços.

Ainda há obstáculos arquitetônicos”, observa. “Mas de dois anos para cá a discussão sobre deficiência evoluiu demais”. Ela nota os professores mais preparados para lidar com as limitações de estudantes. “Não podemos reclamar. A Universidade já é um ambiente diferente”.

É preciso ir além

Quem comanda a Unesc concorda: são necessários mais avanços para quem dribla falta de visão, de audição e outras barreiras. “Eles são corajosos, guerreiros, para se deslocarem e serem ouvidos”, aponta a reitora Luciane Ceretta. “Enquanto cidadã reconheço que colocamos algo na calçada sem lembrar dos que não veem e ali precisam passar”, exemplifica.

Elisabete, a psicóloga já formada, sabe bem do que a reitora está falando. “Na esquina do meu prédio havia um bar com uma calçada muito ruim. Reformaram a calçada. Que ótimo. Encheram de mesas. Que ruim. Encarei, bati nas mesas e passei”. A persistência dela surtiu efeito. “Tem menos mesas agora lá”, conta a moradora do bairro Comerciário, que já torceu um pé ao passar em um bueiro pela Avenida Centenário. “Cega e com gesso, imagina. Como eu subia as escadas do meu prédio”. Nada que inibiu, claro. Mas que dificultou, dificultou.

Daniela, a estudante de Psicologia, encarna bem essa essência cidadã que a limitação visual confere. “Sou presidente do Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência em São João do Sul. É uma causa que mexe comigo. Quero atuar na Psicologia para ajudar as pessoas”. E ela já começa pelas escolas, com base nas experiências que viveu. “Hoje tem muitas crianças cegas estudando. A gente pede aos professores que digam aos demais alunos que vai ter um coleguinha diferente, que precisa ser respeitado e ajudado”. O bullying do passado ainda deixa cicatrizes. “Pois tem muita criança que está na escola, mas está excluída”.

Fiz o vestibular em braile, passei e  pensei: e agora? Exigiu muito esforço, mas tem recursos. Valeu a pena”.
Elisabete Barbosa, deficiente visual, psicóloga.

Incluir também é diversidade

Um estudante que se locomove com dificuldades e precisa de fisioterapia. Outro que usa cadeira de rodas e tranca nos pisos irregulares dos corredores. E mais outro que, o professor percebe, seu rendimento cai por depressão ou transtornos de humor. “Demandas assim, ouvimos várias”, confirma a professora Luciane Ceretta, lembrando os tempos da campanha que a levou à Reitoria. Daí para o surgimento da Secretaria da Diversidade foi um passo. “Atentos às minorias, aos gêneros, às opções sexuais e, também, às limitações físicas e de intelecto”, reforça a reitora.

A entrada em operação da secretaria, em 12 de junho último, foi um eco dos debates nos mais diversos grupos da Universidade. “Em 2016 a Unesc assinou um pacto no qual se comprometia a trabalhar pela diversidade”, lembra a professora Janaína Damásio Vitório. Destacada para coordenar o novo organismo, ela entrosa nas políticas e ações o SAMA, o CER e todos os setores que, de uma forma ou outra, cumprem missões de integrar. 

“Combater a intolerância, fortalecer campanhas de cultura de paz e respeito”, explica Janaína, realçando o que aspira a secretaria. A primeira grande pesquisa assinada pelo segmento de diversidade da Unesc envolve a estudante Daniela Oliveira, a mesma acadêmica de Psicologia de São João do Sul cujos sonhos transcendem a visão escurecida. “Ela e mais uma estagiária estão fazendo um levantamento com alunos sobre raças, ideologia de gênero e orientação sexual”, conta a professora Janaína. “Fizemos um encontro sobre violência de gênero no campus, o encontro de mulheres negras e outras iniciativas”. 

Tudo para criar, a partir da Universidade, um ambiente de visão coletiva que ganhe as ruas. “Afinal, queremos isso, ser um bom espelho da sociedade”, salienta a reitora. “Para que as pessoas não sejam mais separadas em com deficiência e sem deficiência, mas que os espaços sejam de livre acesso para todos”, complementa a professora Tatiane Macarini, que coordena o CER da Unesc.

Hoje as crianças cegas estão na escola. Quando eu entrei, fui a primeira. Era tudo mais difícil”.

Daniela Oliveira, estudante de Psicologia da Unesc

 

A segunda língua na Unesc

Uma biblioteca recheada de livros em braile. Uma estante inteira, centenas de títulos, que vão da Literatura universal aos conhecimentos jurídicos. Tem desde a Constituição de Santa Catarina até clássicos como “O Pequeno Príncipe” para que cegos leiam com tranquilidade. Mas o acervo da Unesc não é o único sinal claro de comunicação alternativa. É contra as exclusões que o cotidiano oferece que a Unesc também trabalha. “Se um surdo, cego ou autista vem aqui e escolhe um curso que bate de frente com suas habilidades, explicamos e sugerimos outros caminhos”, comenta a professora Zélia Silveira. “Formados um estudante surdo em Ciências da Computação”. 

Para comemorar tal feito, a Universidade incrementa o acesso ao segundo idioma brasileiro: a língua brasileira de sinais (Libras). “Temos três intérpretes contratadas”, refere a reitora Luciane Ceretta. “Elas trabalham desde a tradução de documentos, livros, trabalhos, provas até em eventos”, destaca. “Temos curso de extensão em Libras, oferecemos a primeira pós graduação na língua no sul do Estado. Lidamos bem com a demanda”, completa Zélia.

As lições que vêm do escuro

“Estava bem escuro. Fiquei nervosa, não sabia o que tinha ali”. As impressões da estudante Isabely Casagrande, do Colégio Unesc, são uma fração do que enfrenta quem não enxerga. “Foi muito bom para aprender e refletir”. Isabely e outros tem vivido essa sensação ao longo da Semana da Pessoa com Deficiência da Unesc. Ela percorreu os poucos metros da Sala Sensorial, um corredor escuro com objetos nas paredes. Ao tocá-los, a soma de fatores vai levando pelos caminhos, até a volta da luz.

“Esse é o nosso objetivo, fazer refletir”, conta a professora Janaína. “É um provocador para uma das grandes barreiras que a sociedade impõe a quem espera ser incluído: a aceitação”, sublinha a professora Zélia. “As pessoas erram no comportamento e atitudes. A forma que elas pessoas veem umas às outras não pode levar em conta somente as limitações”, ensina Elisabete, do alto das suas mais de três décadas de vida sem enxergar. “No passado, o cego mal tinha direito a viver. Hoje, compartilhamos espaços, falamos, pensamos”, observa. “Mas há muito a evoluir”, emenda a psicóloga.

Para a estudante Daniela Oliveira, que das suas duas décadas e meia de vida só aprendeu a se locomover com bengala e alguma liberdade há dez anos, a próxima grande guinada da inclusão é muito mais psicológica que material. “As mudanças mais importantes serão nas atitudes, com mais respeito e compreensão”, reivindica. “Hoje uma criança cega na escola está com um segundo professor. A Universidade já integra às turmas, as primeiras séries e os seus professores precisam seguir esse rumo”. Lições que a academia ensina e os bancos escolares ainda precisam assimilar.

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